terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Perdoai-me Dionísio

Perdoaí-me Dionísio pelo plágio, mas hoje saí para procurar um homem. Se que se pode chamar de homem isso...saí para procurar meu fogo, saí atrás de meus passos.
Entenda-me mestre Dionísio, tua busca pelo homem encontra-se no limiar da minha busca pela chama. Digo mais: não apenas a minha, mas de qualquer um que se inquiete o suficiente para buscá-lo. Não se traduz em palavras a inquietude espirtual de um homem que perdeu sua chama. Não há tristeza ou angústia que exprima o vazio que deixou em nós a lacuna da chama de Prometeu. Ah! Devolvam minha chama! Acaso fui vil e injusto para perde-la? Acredito que tenha sido de fato.

Era uma noite chuvosa em um calmo mês de maio. O céu cintilava timidamente buscando penetrar o mar de luzes da grande cidade. O vento soprava calma e animador pelos corredores da selva urbana. Um olhar atento revelaria que tinhamos uma convidada ausente no céu...mas quem se importa com a Lua? O que a Lua tem haver com nossos problemas? Mais importante é que continuemos submersos no nosso mar de problemas e deixemos a lua para àqueles sem eles.
Era justamente o que eu fazia naquele noite: tentando não ter problemas. Mas eis que quando penso não ter problemas, minha chama simplesmente escapuliu de meu coração. Pulou ela de minha alma e se perdeu em devaneios pela selva de pedra.
Apanhei timidamente minha lanterna no que foi por muitos anos meu lar e saí a buscar minha chama. Pessoas sem rostos, ou melhor dizendo, com milhares de rostos, tantos rostos que parecem não ter nenhum por verdade. Estas pessoas não me entendiam. Tive que continuar a minha busca.
Busquei a minha chama por entre os surbúrbios miseráveis da cidade. Lugares onde impera a rainha Miséria junto com o imperador Medo. Lugares capazes de gelar a espinha de muitos na mera possibilidade de ter que atravessar o lugar. Ainda que em um carro há 100 km/h. Mas ali não encontrei minha chama. Encontrei mortes, pobreza, assassinatos, drogas. Nada de muito diferente, pensei. Buscando por residências encontrei famílias passando fome. Não entendi de imediato porque a família passava fome, uma vez que havia uma televisão magnífica no que deveria ser a sala de estar, e todos os habitantes possuíam celulares de última linha. Mas então compreendi que aquele filme já havia sido exibido diversas vezes. Eu já cansei de assistí-lo. Continue a procurar minha chama. Mas ainda que revistasse todas as residências não a encontraria. Tive que continuar minha busca.
Busquei então por entre os altos escalões da sociedade. Pessoas que cheiravam a dinheiro juntamente com seus milhares de perfumes importados e bijuterias astronômicamente caras, com um sorriso no rosto e veneno no coração...ah, como me senti sufocado por todos aqueles vocábulos rebuscados! Tédio disfarçado de diversão era vendido em altas doses naquelas fortalezas de capital. Enquanto se nota um padrão de vida altíssimo com carros importados, percebe-se logo a pobreza de espírito dessa gente. Sede de poder, poder e poder. A sede insaciável dos ricos os colocou em um eterno ciclo de enriquecer cada vez mais, até que o dinheiro não mais pague suas contas divinas. E então apaga-se a chama. E então não são todos como eu? Pobres coitados! Iludidos com a ilusão rebuscada do dinheiro. Haverá sua hora de buscar a chama também. Não, não é possível comprar a chama de volta. E ainda que eu visitasse todas as residências e educamente perguntasse por minha chama, não a encontraria ali. Tive que continuar minha busca.
A noite se tornou mau-humorada. O céu se vestiu com seu habitual manto de luto. Seria o luto pela pobre humanidade perdida? Uma leve garoa começou a titubear pelas vielas da cidade. E eu caminhava cada vez mais sem esperança. Iria a minha chama se apagar de vez? Para minha surpresa encontrei uma pessoa com rosto. Tamanho foi meu assomo que a abordei, talvez ela tivesse rosto apenas a mim, quem sabe?
-Acaso viste a minha chama por aí amigo?
A figura olhou para mim compadecida e respondeu:
-Não compreendo o que dizes, andarilho.
-Procuro o fogo do nosso coração, acaso vistes?
-Perdeste a mulher que ama? Não consegue mais amar? É isso que me dizes?
-Não meu caro, não falo de amor. Não falo deste amor imerso em impurezas da luxúria, pois este é totalmente repulsiva e nojento, melhor seria que fosse desintegrado a mera sombra do mesmo. Falo sim do fogo que aviva a nossa alma. Falo de ler um livro e se emocionar com a beleza de sua história. Falo do arrepio que percorre o nosso corpo ao ouvir uma música. Falo de ser o próprio protagonista do filme, de vivenciar cada instante como se fosse o último. Falo de ouvir cada nota de uma sinfonia entrar em seu corpo assim como sentir cada lágrima vertendo de seu olho comovido. Esta é a minha chama. Acaso a viste por aí?
-Pobre coitado...neste mundo de cinzas e poder, as chamas se apagam e nunca retornam. Estás fadado a buscar pela eternidade por tua chama, pois este mundo já não te devolve. Abandonda tua busca bom andarilho, contenta-se com o que tornaste!
-Eu sou um filho da chama e chama sou. Não admito que o gelo se aposse de minha alma e me tire o poder de amar. Se perdi este poder para este mundo de cinzas, hei de retomá-lo a força com os méritos do meu coração. O gelo nada pode contra o fogo. O calor do amor sempre há de triunfar frente a frieza e a crueldade, assim é a Providência. Mas tu cometes um equivoco maior que não procurar por tua chama caro amigo: tu culpas o mundo pela sua perda...quando o mundo nada mais é que seu espelho que te olhas toda manhã. Acaso um espelho apaga o brilho de mil sóis? Jamais! Se desejas um culpado, olha para o mundo, olha para o espelho, olha para ti!
-Por que hei de me inquietar por algo que sei que não retorna? Por que hei de apostar minha sorte em coisas que não vejo nem apalpo? A insanidade apossou-se de você andarilho! Melhor seria que se internasse em um hospício, faria melhor para tua psiquê.
Notei com espanto que o rosto da figura começou a sumir, em velocidade espantosa. Me apressei a falar antes que fosse tarde:
-"O macaco, não entendo o peixe acha que este se afoga no rio e o retira d'água, não entendo o mal que faz". Tu também buscarás pela chama, pois esta ilusão chamada poder não pode substituir jamais o brilho de mil sóis.
E o rosto de meu amigo sumiu em cinzas, e minhas palavras já não chegavam ao seu coração. Tive que continuar minha busca...

E você, acaso viu a minha chama?

Paz Inverencial.