domingo, 15 de maio de 2011

Max Planck e a Concepção da Matéria

Poucos foram os séculos da história humana que presenciaram tantas mudanças quanto o século XX. Para melhor ou para pior, por atrocidades ou benevolências, o século XX, século de Elvis Presley, Adolf Hitler, Albert Einstein, Gandhi, foi um século pelo qual nossas concepções mais firmes e profundas da realidade foram alteradas: nem mesmo o espaço e o tempo, conceitos antes tratados, talvez exceto pelo mais contestador dos filósofos, como absolutos e imutáveis foram poupados de uma total reformulação.

Foi nesse contexto, pouco depois que Maxwell unificou a eletricidade, o magnetismo e a óptica e Boltzmann formular a mecânica estatística (calma, já falo mais sobre esses dois), que um físico chamado Max Planck apresentou um modesto trabalho no final de uma primavera de 1900, que viria também a mudar totalmente a nossa concepção sobre a matéria.

Para entender o quão magnífico foram os trabalhos de Planck, não tem jeito, é só estudando muita física :). Mas como eu sei que isso não é possível para muita gente, vou tentar passar da maneira mais agradável possível a beleza do seu trabalho e o que ele significou para a humanidade. Para isso, precisamos voltar muitos anos antes de Cristo, na gloriosa época dos gregos. A questão do que é feita a matéria começou a surgir ainda nessa época, possuindo várias hipóteses e vertentes diferentes. Muitos autores e estudiosos afirmam que as primeiras concepções da matéria são marcos da filosofia ocidental, mas há de se deixar claro que não há uma demarcação nítida entre o pensamento mítico, pré-racional e o pensamento racional associado com a visão científica do mundo. De fato, naquela época, a coexistência das duas cosmovisões era bem comum.

Mas a própria pergunta do que é feita a matéria já ilustra muito bem uma tendência que se reflete até hoje na ciência moderna. Quando nos perguntamos do que é feita a matéria, estamos naturalmente supondo que TODO e QUALQUER tipo de matéria é composto de alguma coisa mais simples, ou pelo menos, de um conjunto de coisa mais simples. A essa tendência de simplificação, costumamos chamar de reducionismo. A vertente contrária, que acredita que nem tudo pode ser reduzido a soma de suas partes, é o holísmo, "O todo é mais que a soma das partes", como já diria Aristóteles (o que não deixa de ser irônico, já que Aristóteles era um filósofo reducionista).

Uma das primeiras suposições feitas sobre a concepção da matéria se deve á Thales de Mileto, da Escola Jônica, que acreditava que toda e qualquer matéria era primordialmente água. Anaxímenes, outro filósofo de Mileto, acreditava que na verdade, tudo era primordialmente ar, enquanto que Heráclito acreditava que tudo era fogo. Xenófanes de Cólofon por sua vez acreditava que tudo era formado por terra, e finalmente, Aristóteles acreditava que todas as coisas eram concebidas dos quatro elementos, água, terra, fogo e ar. Embora essas concepções possam soar reducionistas demais, vale lembrar que para os gregos, água era qualquer tipo de líquido, terra qualquer tipo de sólido, fogo qualquer tipo de energia e ar qualquer tipo de gás (eles não estão errados no fim das contas). Em meio a esses filósofos, existiam também vertentes mais materialistas, como por exemplo, Demócrito, que acreditava que a matéria era formada por partículas indivisíveis e indestrutíveis (átomos!).

O problema natural dessas hipóteses é que elas não podiam ser testadas. Todos esses filósofos tem argumentos belíssimos a respeito de seus pontos de vista, mas nenhum deles falseável. Ao leitor interessado, sugiro o excelente livro Física Moderna de Francisco Caruso para conhecer mais.

O tempo passou e veio o declínio da Grécia, e a constituição da matéria continuou sendo um mistério, sendo até mesmo esquecido durantes os mais negros anos da Idade Média.

O advento da física, como a conhecemos hoje, começou com o método científico sugerido por Galileu, e pegou no tranco quando o grande físico Isaac Newton formulou suas três leis da mecânica, que até hoje são estudadas e fazem estudantes sofrerem no colegial ou na universidade. Por recapitulação apenas, lembro a vocês que a Primeira Lei, ou lei da Inércia, diz que um corpo em movimento retilínio uniforme ou em repouso assim permanecerá a menos que atue sobre ele uma força. A segunda lei, por sua vez, conhecida como Princípio Fundamental da Dinâmica, nos conta de que maneira uma força altera o movimento de um corpo, ao postular que F=ma, i.e, força igual a massa vezes aceleração, e a terceira lei diz que para cada ação existe uma reação de igual intensidade e sentido contrário. Sobre as leis de Newton, existem dois pontos principais a se considerar para fins dessa discussão:

  • As leis de Newton são reducionistas, no sentido explicado mais acima. Newton resumiu TODO e QUALQUER movimento em uma simples lei de força. Note que quando escrevemos F=ma, não importa se o objeto no qual a força atua é um ser vivo ou morto, se é uma pedra ou uma banana, se é uma pessoa ou um cometa, toda a força aplicada vai alterar movimentos da forma descrita pela lei;
  • Por motivos explicados no item anterior, para as leis de Newton, não importa do que é feita a matéria. Se a matéria for feita de átomos, continuaria valendo F=ma, assim como se não forem átomos, e sim pequenas bolinhas de queijo, ou duendes, ou qualquer coisa que você possa imaginar. Em outras palavras: as leis da mecânica são indiferentes a composição da matéria.

Foi também o próprio Newton quem formulou sua Lei da Gravitação Universal, que postulava a existência de uma força entre dois objetos, que só dependia da distância entre eles (mais especificamente, do inverso do quadrado da distância), da massa de cada um deles e de uma constante universal. Novamente, nessa lei não existe nenhuma consideração a ser feito a respeito da natureza da matéria: toda matéria possuí massa, portanto, exerce uma força gravitacional, sendo a constituição dessa matéria macacos microscópicos ou átomos, é indiferente para lei da Gravitação. De fato, a lei é tão indiferente a natureza da matéria que chega a ser herética: note que normalmente o símbolo associado à gravitação é uma maçã (que vem da história, possivelmente falsa, do insight de Newton sentado embaixo de uma macieira). A maçã é também o símbolo do pecado, motivo da expulsão de Adão e Eva do paraíso. E o que justamente afirma a lei da Gravitação?? A gravitação afirma que as leis do Céu são iguais as da Terra! A força gravitacional depende apenas de massa, e não se o objeto em questão é celeste ou terreno. Isso significa que as leis que governam o movimento dos astros celestiais são as mesmas leis que governam o movimento do andar de uma carruagem. E isso em si, é uma idéia reducionista bem forte!

Apesar do imenso sucesso das leis de Newton, principalmente após a descoberta do planeta Urano (descoberto por conta de uma detecção no desvio da órbita de Saturno, que pelas leis de Newton, só seria possível se houvesse um planeta como Urano orbitando próximo), elas falhavam em explicar alguns pontos fundamentais da natureza: por que alguns processos podem ocorrer em apenas um sentido? Por exemplo, considere a imagem abaixo:

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/16/Melting_icecubes.gif

Por quê o gelo no copo (tenham paciência quem já ouviu falar em entropia, por favor) pode derreter e virar água, mas um copo de água líquido, em temperaturas normais, não pode virar gelo? Se gelo pode derreter, porque água não pode congelar? Aí você responde: ela pode, mas você precisa colocá-la em um local frio. Mas por quê? Por quê existe uma direção para onde fluí o calor? Isso não está previsto nas leis da mecânica, sendo a única previsão nesse sentido é que a energia de um corpo deve se conservar. Foi por conta desse mistério que Kelvin, Carnot, Clausius e outros formularam as Leis da Termodinâmica, uma nova área da física, a saber:

  1. (Lei Zero): "Se um corpo A está em equilíbrio térmico com um corpo B, e este em equilíbrio com C, então C está em equilíbrio com A;
  2. (Primeira Lei): "A energia de um sistema isolado se conserva";
  3. (Segunda Lei): "A entropia de qualquer processo espontâneo, i.e, que ocorre naturalmente, sem precisarmos gastar energia, sempre aumenta";
  4. (Terceira Lei): "É impossível atingir por meio de processos finitos, por mais idealizados que possam ser, o zero absoluto de temperatura".

Falando de forma simples, a Lei Zero nos permite definir temperatura e usar um termômetro (quando usamos um termômetro, estamos tacitamente admitindo a validade da Lei Zero), a primeira lei nos diz que não podemos criar energia de lugar algum e não podemos destruir energia; a segunda lei diz que existe uma quantidade chamada entropia, que mais tarde, na época de Boltzmann, é interpretada como a desordem de um sistema, que sempre aumenta se o sistema for isolado e o processo espontâneo. É importante lembrar dessas suposições. A terceira lei nos conta simplesmente que não podemos atingir o zero de temperatura (e isso tem conseqüências bastante profundas).

A termodinâmica, assim como a mecânica de newtoniana, é completamente indiferente a natureza da matéria, ou do sistema onde ela é invocada. Note que em nenhuma das quatro leis apresentadas existe qualquer necessidade de se conhecer a natureza interna de um sistema. O sistema pode ser um gás, um fio sob tensão, um sal paramagnético, macacos atrozes, hienas saltitantes ou qualquer coisa que você queira imaginar. Todo e qualquer processo que possa ocorrer com esse corpo de natureza misteriosa obedece as leis da termodinâmica.

Entretanto, por motivos que não são fáceis de se explicar, a Termodinâmica não é uma teoria reducionista, assim como é a mecânica. Posso tentar explicar isso grosseiramente dizendo que a termodinâmica não reduz o sistema a primeiros princípios (por exemplo, as quatro leis enunciadas da Termodinâmica podem ser reduzidas apenas a duas, a Primeira e a Segunda Lei. A Lei Zero e a Terceira Lei são conseqüências da Segunda Lei). Outro motivo pode ser enxergado da seguinte maneira: para a teoria de Newton, as coisas são partículas, que são objetos idealizados, infinitamente pequenos e sem dimensão. As partículas para a mecânica eram um conceito artificial, criado apenas para simplificação e que depois de feita as contas, por uma operação matemática chamada integração, eram removidas e tornavam-se corpos extensos, de tamanho e dimensão finitos. Agora, do que eram feitos estes corpos em essencia não importava! A partícula é meramente na época um artifício matemático. Para a termodinâmica, não faz a menor diferença se são ou não partículas! Através de argumentos termodinâmicos, podemos conhecer propriedades interessantes de um sistema, mas ela é incapaz de reduzir a descrição de qualquer sistema que seja a primeiros princípios. Tanto é que na época em que foi formulada, uma boa parte das equações da termodinâmica eram empíricas.

Por fim, para terminar essa sucinta (acredite, não estou sendo irônico quando digo sucinto. Existem livros inteiros para descrever cada uma das minúcias que passei batido nessa história) discussão, começaram a surgir no século XIX as leis da eletricidade e do magnetismo, sendo elas depois finalmente unificadas por Maxwell como uma teoria de campos. Já para o eletromagnetismo, a coisa começa a mudar de figura em relação a natureza da matéria. A força elétrica, por exemplo, provocada pela presença de duas cargas, depende do produto da carga elétrica das duas, o inverso do quadrado da distância e uma constante que depende do material onde as cargas estão inseridas. Oras, ao contrário da gravitação, existia algo estranho no eletromagnetismo: é natural pensar que todos os corpos tem massa, mas porque alguns corpos tem carga elétrica e outros não? Essas são questões que poderiam e começariam a apontar para o estudo da estrutura da matéria, coisa que era completamente supérflua até então (para a física, ao menos). Essa discussão tornou-se ainda mais profunda quando Boltzmann formulou a mecânica estatística. Boltzmann imaginou que, ao contrário da concepção da mecânica newtoniana até o momento, todas as coisas eram formadas por pequenas partículas chamadas átomos, e que as propriedades macroscópicas, como temperatura, pressão, e volume de um sistema poderiam ser derivadas e obtidas por considerações estatísticas das leis de Newton. Assim, poderíamos calcular a pressão de um gás imaginando que ele era formado por átomos e estudando a média dos movimentos desses átomos. A temperatura seria então uma medida da energia cinética das partículas. Vale notar que conceitos como temperatura, pressão e volume eram até então variáveis que só tinham sentido para a termodinâmica! A proposta de unificar esses conceitos macroscópicos termodinâmicos com as leis fundamentais de Newton era ousada. Havia, naturalmente, o problema da entropia: as leis de Newton não levavam em conta a direção de processos espontâneos tal qual requeriam as leis termodinâmicas. Boltzmann, entretanto, interpretou a entropia da termodinâmica como representando um grau de desordem do sistema, e postulando que essa desordem tendia sempre a aumentar (por uma questão de probabilidade). Apesar da enorme beleza da idéia, a maioria dos físicos da época, como por exemplo Planck, eram extremamentes resistentes a idéia de que a Termodinâmica poderia ser derivada de leis físicas mais fundamentais, como eram as da mecânica estatística.

E esse era o contexto da física no último ano do século XIX (no qual Planck apresentou seu trabalho). Como espero ter deixado claro, se você perguntasse a um físico do século XIX e início do século XX do que era feita a matéria, ele provavelmente diria "tanto faz" ou ainda "essa questão não concerne a minha área de estudos", embora alguns deles começassem a se incomodar com o eletromagnetismo e a teoria de Boltzmann. A constituição da matéria no momento era portanto, supérflua, sendo necessária apenas uma explicação do porque alguns corpos tem cargas e outros não (e isso foi imaginado de diversas maneiras diferentes, nem todas elas relacionadas com a estrutura de um material).

A grande avalanche ocorreu quando Planck tentou explicar o comportamento de um objeto chamado de corpo negro. Corpo negro em física é qualquer corpo que absorve toda radiação que nele incide, não refletindo ou deixando atravessar nenhum tipo de radiação. Na época existia uma imensa dificuldade na descrição do corpo negro, isso pois todo e qualquer modelo que tentavamos a ele aplicar na época falhava em prever o comportamento do corpo para comprimentos de onda pequenos. Frustrados, diversos físicos propuseram formuladas empíricas que descreviam satisfatoriamente o corpo negro, mas nenhuma dessas fórmulas eram baseadas em teorias físicas existentes na época, como o eletromagnetismo, a mecânica ou a termodinâmica (embora esta última tenha sido muito usada na reeinterpretação de algumas dessas equações). O problema que Planck enfrentava pode ser visualizado na figura abaixo:

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/19/Black_body.svg

A curva em preto é a previsão da teoria clássica (que cresce indefinidamente a medida que nos aproximamos de pequenos comprimentos de onda, no eixo x), e as curvas coloridas são curvas feitas experimentalmente. Nas curvas experimentais podemos ver que as curvas não crescem indefinidamente, mas tem um pico e depois voltam a cair.

Planck era um físico extremamente conservador, que detestava, por exemplo, a teoria de Boltzmann, achando que a mecânica e a termodinâmica eram completamente incompatíveis. Entretanto, quanto mais ele se aprofundava no estudo do corpo negro, mais ele sentia necessidade de um modelo físico mais profundo, que levasse em conta a composição da matéria. Foi a partir daí que Planck teve que, pela primeira vez na história da física, tentar vislumbrar como era a estrutura da matéria, para assim poder explicar porque o corpo negro tinha comportamento diferente do previsto pela teoria eletromagnética. Ao fazer isso, ele imaginou que um corpo negro era formado por pequenas molas, que ao receber radiação, oscilavam com a mesma freqüência da radiação e depois emitiam essa radiação de volta. Isso por si só já é uma idéia absolutamente revolucionária! Foi o primeiro modelo e a primeira tentativa de tentar descrever a estrutura da matéria, de tentar através de leis da mecânica compreender propriedades físicas de um corpo! Mas ao fazer isso, ele se deparou com uma dificuldade fundamental: as "molas" que ele imaginou refletiriam parte da radiação recebida, de modos harmônicos, como se fossem notas musicais, chamados em física de modos normais de vibração. Por argumentos de conservação de energia e momento, e por outros argumentos bem complicados que não me convém fazer análise, num ato de desespero final, Planck postulou que a energia da radiação emitida por um corpo negro era um múltiplo de sua freqüência, levando a famosa equação que aprendemos no colégio E=h.f (onde h é uma constante e f é a frequência).

Se Planck tivesse alguma idéia do que sua descoberta causaria, talvez ele não a tivesse publicado achando as conseqüências absurdas. Na época em que escreveu que E=hf, Planck não acreditava que essa equação tivesse realidade física, sendo apenas um artifício matemático. Mas eis que no milagroso ano de 1905, Albert Einstein publicado um artigo afirmando que a energia de qualquer radiação é E=hf, e dessa vez, sem dizer que aquilo não tinha realidade física! Para explicar isso, Einstein dizia que a radiação eletromagnética na verdade não era uma onda, como acreditavam os físicos na época, mas sim ora partícula, ora onda! Tal suposição levou os físicos a loucura, e suposições ainda mais malucas foram feitas, considerando agora por exemplo que também matéria não apenas matéria, mas matéria-onda! Isso provocou o nascimento da hoje famosa Mecânica Quântica, que é como hoje enxergamos a estrutura da matéria, e esse é um assunto que deixarei para outra hora.

A beleza do trabalho de Planck foi mais do que quantizar quantidades físicas, foi ser o primeiro a desbravar e tentar modelar a própria estrutura da matéria, tópico que hoje é profissão da maioria dos físicos brasileiros (i.e, a física da matéria) e que hoje tem nos trazido tantos benefícios tecnológicos como entendido dos pílares e forças fundamentais da natureza.

Espero ter conseguido deixar o texto bem claro, e qualquer pergunta, crítica ou sugestão, favor comentar que respondo prontamente =)

domingo, 30 de maio de 2010

Prelúdio: Despertar

Conforme seu Porche corria pelas ruas da cidade, seus olhos se prenderam subitamente a um velho letreiro mal iluminado, naquela esquina mal frequentada. Os letreiro dizia em letras quase ilegíveis, quase como se fosse mais um tênue farol para um barco perdido do que um aviso comercial para um transeunte: "Cartomancia e Advinhações".
Besteira. Ele pensou. Somente a gentalha que frequentava uma região como aquela podia se quer dar-se ao luxo de considerar tamanha tolice. É por isso que aquela região era tão pobre. Se ao menos as pessoas soubessem em que empregar seu dinheiro, ao invés de cartas e adivinhações baratas, ganhariam mais dinheiro e fariam mais sucesso na vida. Os transeuntes quase conseguiam ler seu transtorno, conforme a sua raiva transmitia-se, por alguma lei física ainda desconhecida ao pedal do carro. E então, aquele carro movido por uma força ainda não descrita pelo homem, o ódio, disparou pela cidade.
Por quê aquilo lhe irritava tanto? O que tinha ele haver com o problema dos outros? O dinheiro e a tolice eram deles, eles que ficassem pobres e passem fome. Isso em nada mudaria a sua maneira de pensar. Apenas se a educa...seu devaneio foi interrompido por uma série de eventos demasiados confusos para sua cabeça entender a tempo antes de cair na inconsciência. O que ele pode perceber foi um barulho estrondoso ao seu lado, e um empurrão magnífico vindo na outra direção. E então, silêncio.

"Pode me ouvir filho?" Uma voz vindo de algum lugar da escuridão chamou sua atenção.
"Oi?"Perguntou de volta.
"Você sofreu um grave acidente senhor...Dionísio. No momento o senhor se encontra em repouso no hospital. Consegue me entender?"
E de repente, a luz voltou aos seus olhos. Os raios de luz não pareciam estar com saudades, tendo em vista que carregavam péssimas notícias: conforme sua visão voltava ao foco, Dionísio se viu deitado em uma cama de hospital, com tantas ataturadas que poderia facilmente se passar por uma múmia em alguma festa de Halloween. Um médico olhava preocupado em sua direção.

"Você ficará bem, filho. Com algum repouso logo estará pronto para partir. Infelizmente, o mesmo não pode ser dito em relação ao seu carro."
"Obrigado doutor...?"
Mas se o doutor respondeu o nome, Dionísio nunca soube, pois no momento seguinte os raios de luz se cansaram da breve visita e se esvariam, levando Dionísio novamente à escuridão.

Enquanto estava na escuridão, Dionísio se viu em uma sala repleta de espelhos. Ou deveriam ser espelhos, caso cada um deles não lhe mostrasse um reflexo diferente. Um destes espelhos mostrava um homem de terno. Elegante, sorrindo, do tipo ideal para se fazer negócios. O outro espelho mostrava um homem mais velho, de cabelos e barbas mal cuidados, sua face transbordando decepção e tristeza. De certa maneira, este espelho lhe lembrava seu pai. O terceiro espelho lhe mostrava uma criança, alegre, a pular e festejar pelos cantos da sala, fazendo de cada quina e cada canto um universo diferente e empolgante. Outro espelho, mostrava-se vazio. Outro ainda, lhe mostrava uma mulher.

Confuso, Dionísio sentia um desejo grande de se enxergar nos espelhos. Como era sua própria imagem? Quem destes ele era? Não lhe vinha a memória sua imagem, e tal fato começou a lhe desesperar. Como saber qual dos reflexos? Como saber seu sexo? Como saber sua idade? Tentou se lembrar do espelho do seu banheiro, o qual todo dia, ao acordar, escovava seus dentes e fazias suas necessidades higiênicas. Com decepção, percebeu que não se lembrava de sua imagem. Ainda que todo dia fizesse esse mesmo processo.

A escuridão novamente se desvaneceu, mas dessa vez, a luz lhe foi receptiva: a imagem que se formou em sua retina foi a de um médico sorrindo e lhe pedindo uma assinatura de alta do hospital.

Ao chegar em sua casa, Dionísio sentou-se na poltrona da sala. Ainda não se sentia preparado para entrar dentro de sua casa. A sua sala, conforme pensava, era o lugar onde era permitido ao mundo trazer seus males. Depois do suave portal, enfeitado por uma porta simples de madeira e uma vidraça colorida, não era permitido ao mundo adentrar com seus sapatos sujos e maculados. Pelo menos, era isso que ele gostaria de acreditar. Toda discussão ou briga deveria ser feita nesta sala, assim como qualquer tratamento de negócios. Passada esta sala, o mundo não deveria acompanhá-lo.

A sala era aconchegante. Embora não fosse perceptível para Dionísio, morador do local, um doce cheiro de biscotios sendo assados constantemente enxia o lugar, dado as atividades de sua mãe, moradora da casa, que era uma cozinheira compulsiva (e também compulsiva comedora de biscoitos). Os sofás sempre em cores vivídas e quentes, e pendurado nas paredes, quadros surealistas diversos, a maioria com o retrato do Tempo. Um relógio de pêndulo também era pendurado sobre uma das paredes, e seu badalar era doce. Não como um badalar de relógio para um condenado que espera a hora de sua sentença, ou que espera a hora de sair para o trabalho, mas o badalar de um relógio de quando estamos na casa de nossos avós, ainda crianças, descompromissado, ritmado, e constante. Tranquilizador.

A imagem do sonho não conseguia deixar Dionísio. Quem ele era? Seria ele o fino homem de negócios, destinado a uma carreira de sucesso? Seria ele o velho, amargurado e decepcionado com o mundo? Seria então, a criança feliz que fazia de tudo um universo? Ou seria aquela mulher elegante? Seria ele, na verdade, tudo aquilo? Pensou em olhar um espelho. Mas isso não faria a menor diferença. Em todos os dias de sua vida, ele olhará um espelho, mas nunca se aperceberá de quem era. Qual seria o sentido de fazer isso agora? A sua necessidade não era física.

Foi então que percebeu. Escreveu um curto bilhete para sua mãe, dizendo que não sabia onde ia, nem se voltava. Mas que precisava sair.

Pegou seu sobretudo vermelho, vestiu seu chapéu e saiu. Lá fora, o céu era ilegível e cinzento. Chovia uma leve garoa.

Era hora de prestar uma visita à cartomante.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Koyaanisqatsi


Ficha Técnica:
Gênero: Documentário
Tempo de Duração: 86 minutos
Ano de Lançamento (EUA):
1983
Direção: Godfrey Reggio
Roteiro:
Godfrey Reggio e Ron Fricke
Produção: Francis Ford Coppola
Música: Phillip Glass
Fotografia: Ron Fricke
Edição: Alton Walpole e Ron Fricke

Trailler:
http://www.youtube.com/watch?v=PirH8PADDgQ


Sinopse:

Koyaanisqatsi: Life out of balance é um documentário lançado em 1983 dirigido por Godfrey Reggio com música do compositor Philip Glass.

É o filme mais conhecido da trilogia Qatsi, que é composta juntamente com as seqüências Powaqqatsi (1988) e Naqoyqatsi (2002).

A trilha sonora deste documentário possui grande importância pois o desenrolar tem a velocidade e o tom ditados por ela. Não existem diálogos e também não são feitas narrações durante todo o documentário.

São apresentadas cenas em paisagens naturais e urbanas, muitas delas com a velocidade de exibição alterada. Algumas cenas são passadas mais rapidamente e outras mais lentamente que o normal, criando juntamente com a trilha sonora uma idéia diferente da passagem do tempo. Vários dos efeitos apresentados se tornaram clichês usados em outros filmes e programas de televisão.

A palavra koyaanisqatsi tem origem na língua Hopi e quer dizer "vida desequilibrada", ou "vida louca". O significado é revelado ao final do documentário antes da apresentação dos créditos. No final do documentário são cantadas três profecias do povo Hopi em sua própria língua, as quais também têm suas traduções apresentadas antes dos créditos.

O filme leva sua audiência a refletir sobre os aspectos da vida moderna que nos fazem viver sem harmonia com a natureza, bem como a pressão exercida pelas inovações tecnológicas que tornam o cotidiano cada vez mais rápido. Como curiosidade, podemos observar que próximo dos 37 minutos do início do filme, aparece a implosão do Edifício Mendes Caldeira, que deu lugar à Estação Praça da Sé, do Metrô de São Paulo.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Koyaanisqatsi

Resenha:

Particularmente, não sou grande admirador de filmes excessivamente cults. Geralmente quando alguém me indica um filme cult, é o tipo de filme em que o diretor me joga um bando de elementos desconexos, citações de pessoas famosas, imagens confusas, e de preferência, um ritmo horrosamente tedioso, de forma que eu me sinto absolutamente entediado enquanto outras pessoas se sentem incrivelmente inteligentes.

Mas seria uma grande injustiça se eu falasse isso de Koyaanisqatsi. O filme é inegavelmente cult. Pelo menos cult no sentido de não ser filme blockbuster e ter um roteiro nada convencional, mesmo para filmes europeus ou asiáticos. Mas esse filme é definitivamente uma obra-prima de Godfrey Reggio.

Phillip Glass, acredito eu, dispensa apresentações quanto à qualidade de seu trabalho em trilhas sonoras. De fato, o filme não tem personagens, mas se eu nomeasse algum protagonista, ele seria Phillip Glass, pois é ele quem deu quase toda a cara do filme.

Pra início de análise, nas palavras do diretor, Koyaanisqatsi é uma viagem alucinante pelo mundo. Koyaanisqatsi significa Vida Louca, e é de fato um sentimento muito presente durante o filme. O ritmo do filme é ditado basicamente pela música. Se a música se acelera, o ritmo do filme da mesma forma começa a se acelerar, a própria câmera acompanhando o beat da música.

O filme começa com uma música bem suave e algumas imagens bem lentas. Nesse estado do filme, é necessário que se preste muita atenção, pois ele não é envolvente, o sentimento é quase como de visitar um campo. A beleza da coisa fica diante aos nossos olhos, mas só quem estiver disposto consegue enxergar a arte ali. Paisagens naturais são mostradas, assim como alguns elementos da indústria e ações humanas. O filme trabalha muito com a temporalidade, lidando com fluxos temporais (o que particularmente acho fantástico) acelerados ou lentos, dependendo do que a música pede. Acredito que os clichês com estes fluxos tenham começado após esse filme.

Quando a música começar a se acelerar, prepare-se: agora começa o verdadeiro filme. Agora já não é necessário tanto esforço. Poderia comparar esta beleza como pular de paráquedas, é praticamente impossível não admirar as imagens e a música que se desenrolam a nossa frente. De fato, muitas imagens que o filme mostra são ao mesmo tempo lindas e terríveis, fascinantes e chocantes, e essa é uma antítese que é presente durante todo o filme. Espectadores mais sensíveis podem sentir um leve desespero diante deste contraste, quase como se sentiam os barracos na época da Renascença, sem saber se deve-se admirar a cena ou repudiá-la.

Algumas cenas do filme são memoráveis, como por exemplo, o porta aviões que contém a famosa equação de Einstein, E = mc^2. Como estudante de física, quase tive um orgasmo com essa cena, porque de fato a maioria das pessoas desconhece que essa equação tem praticamente um gigantesco aviso escrito PERIGO.

Mais palavras sobre cenas ou momentos seriam desnecessárias, primeiramente porque estragariam a surpresa e segundo porque não serviriam. Como muitos trabalhos surealistas, este filme é um filme para ser sentido, e não para ser analisado. Algumas cenas nos tocam de uma maneira que é impossível expressar em palavras, mas que é bom saber que esse sentimento não nos é exclusivo, e que alguém no mundo compartilha dele.

É um filme diferente, e deve ser assistido quando você busca um momento mais introspectivo e de admiração. Não recomendo como pura distração. Mas com toda certeza, é uma obra-prima que não pode faltar no conhecimento de nenhum cinéfilo.

Bom filme!

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Equilibrium


Ficha Técnica:
Título Original: Equilibrium
Gênero: Ficção Científica
Tempo de Duração: 107 minutos
Ano de Lançamento (EUA):
2002
Site Oficial: www.dimensionfilms.com/equilibrium
Estúdio: Dimension Films / Blue Tulip
Distribuição: Dimension Films / Miramax Films / Buena Vista International
Direção: Kurt Wimmer
Roteiro: Kurt Wimmer
Produção: Jan de Bont e Lucas Foster
Música: Klaus Badelt
Fotografia: Dion Beebe
Desenho de Produção: Wolf Kroeger
Direção de Arte: Erik Olson e Justin Warburton-Brown
Figurino: Joseph A. Porro
Edição: Tom Rolf e William Yeh
Efeitos Especiais: Riot / Pacific Title & Art Studio / Post Logic Studios / Digital Firepower / Custom Film Effects

seta3.gif (99 bytes) Elenco
Christian Bale (John Preston)
Dominic Purcell (Seamus)
Sean Bean (Partridge)
William Fichtner (Jurgen)
Angus Macfadyen (Dupont)
Taye Diggs (Brandt)
Matthew Harbour (Robbie Preston)
Maria Pia Calzone (Esposa de Preston)
Emily Siewert (Lisa Preston)
Emily Watson (Mary O'Brien)
Alexa Summer (Viviana Preston)
Sean Pertwee (Pai)
John Keogh (Químico)
Christian Kahrmann (Oficial)


Sinopse:
Nos primeiros anos do século XXI aconteceu a 3ª Guerra Mundial. Aqueles que sobreviveram sabiam que a humanidade jamais poderia sobreviver a uma 4ª guerra e que a natureza volátil dos humanos não podia mais ser exposta. Então uma ramificação da lei foi criada, o Clero Grammaton, cuja única tarefa é procurar e erradicar a real fonte de crueldade entre os humanos: a capacidade de sentir, pois há a crença de que as emoções foram culpadas pelos fracassos das sociedades do passado. Desta forma existe um estado tolitário, a Libria, que é comandado pelo "Pai" (Sean Pertwee), que só aparece através de telões. Foi decretado que os cidadãos devem tomar diariamente Prozium, uma droga que nivela o nível emocional. As formas de expressão criativa estão contra a lei, sendo que ao violar qualquer regulamento a não-obediência é punida com a pena de morte. John Preston (Christian Bale) é um Grammaton, um oficial da elite da lei, que caça e pune os "ofensores", além de ter poder para mandar destruir qualquer obra de arte. Um dia, acidentalmente, Preston não toma o Prozia. Pela primeira vez ele sente emoções e começa a fazer questionamentos sobre a ordem dominante.

Dados retirados de http://www.adorocinema.com

Trailer:
http://www.youtube.com/watch?v=6IBNACePYk4

Resenha:
Desde Matrix em 1998, poucos filmes com cenas de ação exageradas chamaram muito a minha atenção. A razão disso é que a ação somente pela ação é pobre, e não acrescenta nada para o filme, e tal coisa não se repete em Equilibrium. O filme é de baixo orçamento, e de muito me admira como um filme bom como esse passou tanto tempo no anonimato.

Muitas fazem comparações entre Equilibrium e Matrix, o que ao meu ver, não tem muita procedência, visto que este é um filme de maior orçamento e com filosofia existencial, e aquele é um filme de pouco orçamento e com uma outra crítica social.

Quem leu 1984 (George Orwell) deve ter achado algumas semelhanças gritantes na sinopse do filme e mesmo no nome de alguns personagens, como por exemplo, Mary O'Brien (Emily Watson), que remete ao personagem de Orwell. De fato, a intenção do filme foi realmente criar uma apologia com a obra de Orwell, coisa que consegue parcialmente.

Primeiramente, o filme tem uma trilha muito bem trabalhada e cenários bem construídos. Claro, alguns são visivelmente computação gráfica, mas isso é perdoável considerando o orçamento modesto que o diretor teve para produzir o filme. Mesmo assim ele consegue criar cenas memoráveis, como por exemplo uma cena onde Preston (Christian Bale) rasga a cobertura de sua janela e tem uma visão da cidade, o que me faz pensar que o filme seria muito maior se mais dinheiro fosse investido nele.

O filme apresenta alguns pequenos problemas de direção e ritmo. Os cortes de cenas são muito forçados, passando de uma cena a outra de uma maneira muita abrupta, muitas vezes dá a impressão de susto pra quem assiste. Apresenta também, por conta desses problemas de ritmo e direção, alguns erros de continuísmo, mas posto na balança, ainda pode ser considerado um bom filme.

A intenção de imitar Orwell foi parcialmente alcançada. O filme deveria ter trabalhado mais a questão do Prozia, a droga que inibe os sentimentos, por exemplo, pelo fato que em diversas falas em situações do filme você vê pessoas que não deveriam sentir demonstrando sentimentos à flor da pele. O que poderíamos pensar é que a droga não inibe os sentimentos, mas sim os acalma, tornando as pessoas frias e calculistas, mas não desprovidas de todo e qualquer sentimento. O problema é que isso não fica evidente no filme, é necessário um pouco de reflexão para chegar-se a essa conclusão. O clima totalitário é bem afirmado pelas construções estatais imponentes, pelas vestimentos e modos homogêneos, mas não se tem a impressão do Estado onipresente que se tem em 1984, pelo fato de que Preston é um exímio lutador, ao melhor estilo Neo, e dessa forma passa a impressão de conseguir vencer o Estado. Assim, no filme enxergamos o Estado como um inimigo que pode ser vencido, e não como um deus onipresente que tememos e cuja batalha é quase impossível de ser ganha.

Agora podemos falar de alguns pontos notáveis do filme. Por exemplo, a coreografia é muito melhor trabalhada que Matrix. Foi desenvolvido um estilo de luta usando kung-fu e armas de fogo, com movimentos alucinantes e de se admirar. Tudo isso com um orçamento modesto, o que mostra que se Matrix tivesse o mesmo trabalho seria um filme com cenas muito melhores de ação (claro que Matrix possuí cenas memoráveis, mas aquela lutinha dragon ball Neo vs Smith do final do terceiro filme...). Além disso, as atuações estão bem-feitas, e não me admira que o Christian Bale tenha sido escalado para ser o novo Batman depois de ver sua performance nesse filme. As cenas onde ocorrem destruição de obras de arte também são tocantes, ainda mais tendo em vista a expressão de quem efetua a destruição. O filme conta também com alguns apelos emocionais, a exemplo de uma cena onde policiais do estado começam a matar animais, pois eles são proibidos. Mas não é um apelo sentimental forçado, clichê nem negativo demais, de modo que seu uso foi saudável, pelo menos dentro desse contexto. O melhor do filme, a parte da coreografia, é a trilha sonora, que de fato nos faz ter a impressão de que dada música é proibida pelo estado, e nos sentimos como pequenos infratores da lei quando as músicas aparecem no filme.

Para concluir, diria que o filme é cheio de sutilezas, e sua crítica e qualidade aparecem em detalhes pequenos do filme, como a cena em que Preston organiza sua escravinha após deixar de tomar a dose de Prozoa. Portanto, para a boa apreciação dessa obra, deve-se ficar atento aos detalhes. É saudável relacioná-los com 1984 também, e você se recordará de muitas passagens do livro que havia esquecido.

Bom filme!

quinta-feira, 30 de julho de 2009

A Praga da Intelectualidade

É sabido, creio eu, por todos, que vivemos em um mundo díficil. Sabemos é claro que passamos por dificuldades, que a maioria das pessoas são más, oportunistas e que querem, e na verdade, irão, nos passar a perna quando lhes for dada a chance.

Entretanto, o que venho discutir aqui não é sobre esses males, mas sim sobre o maior desses males: a praga da intelectualidade.

Para ilustrar o que eu quero dizer com praga da intelectualidade, gostaria de citar por exemplo, a polícia militar. Em teoria, é a polícia a responsável pela manutenção da ordem em nossa sociedade. É sua função a proteção do cidadão, o patrulhamento das ruas e o zelar do bem-estar social, pelo menos no tocante à violência. Para o desempenho de tal tarefa, diversos poderes legais são atribuidos para a polícia, como por exemplo o porte de armas, a escolta, a interpelação, a multa entre outros. Ou seja, o Estado fornece a esta polícia a capacidade de combater a infração à lei, através de treinamentos e poderes legais. Agora, que dizer do respeito à lei, se os seus próprios fiscais, idealizadores e zeladores a descumprem? Como pode um policial que espanca um cidadão exigir respeito por parte de alguém? Como pode ele pedir que a lei seja cumprida, quando ele mesmo não cumpre com a parte que lhe cabe? E como pode ele seguir e fiscalizar essa lei, se aqueles que a elaboram não a respeitam? É uma contradição tamanha!

Este exemplo puxa o que eu quero dizer a respeito da intelectualidade. Notei, por meio de pessoas que eu conheço, uma estranha tendência das pessoas inteligentes: a tendência da arrogância, que se segue ao derrotismo e a imobilidade. Pegamos uma pessoa um pouco mais inteligente que a média, e o seu comportamento mais comum é um desprezo e descaso com o mundo, que beira ao egoísmo. "O mundo é uma merda", dizem eles enquanto tomam vinho e escutam música clássica, chamando todos que gostam de outro gênero musical de aculturados. "O que vai adiantar eu tentar mudar as coisas, se desde o início da história pessoas tentam fazer isso e nunca deu certo?" dizem outros fumando maconha e reclamando das coisas. "Pra que eu vou me matar de estudar, se ninguém presta nesse mundo?" dizem outros enquanto passam seus dias jogando videogames, tirando notas baixas, e justificando sua preguiça jogando a culpa no mal do mundo. Outros, menos imóveis, já decidem não ficar parados: fazem passeatas, vão de visual punk rock na escola, chamam seus colegas de hipócritas e gritam pela revolução, mas quando questionados em o que há de errado com o mundo, sua resposta reduz-se a dizer que a burguesia fede, que o capitalismo é ruim e que o mundo está errado. Pessoas sem nenhuma proposta, os típicos rebeldes sem causa.

Talvez isso seja uma tendência nas pessoas mais inteligentes, causada provavelmente por um conhecimento maior. É sabido que a maioria das pessoas inteligentes têm problemas de socialização em algum momento da sua vida escolar. Talvez essa arrogância seja uma defesa natural, algo para dizer "vivam suas vidinhas medíocres, eu entendo o mundo melhor que vocês, e sei que nada que vocês estão fazendo é útil". Provavelmente essa pessoa inteligente vai chegar ao ponto de achar-se a pessoa mais inteligente do mundo, e tratar a todos com desprezo. A arrogância então, converte-se a descaso, que converte-se ao imobilismo e ao derrotismo.

Em outros casos, pode ser simplesmente escapismo. A pessoa é preguiçosa, é por não querer admitir o fato, joga a culpa no mundo, alegando que ele não merece o esforço.

E outra hipótese pode também ser o fator social. Pessoas que sentem-se infelizes e sem amizades provavelmente não verão motivos para lutar e mudar o mundo. E também Hollywood adora mostrar nos filmes de "críticas sociais", com ladrões e golpistas sagazes e inteligentes, que quando questionados quanto a moralidade de suas ações, dizem fazer isso pois o mundo é ruim e eles não estão sendo piores que ninguém, assim pintam pseudo-intelectuais de pessoas bacanas e legais, o tipo de intelectual que todo inteligente gostaria de ser: tomar seu vinho, fumar seu cigarro olhando do alto do seu prédio e maldizendo o mundo e as pessoas por sua hipocrisia.

O que não percebem estas pessoas é como suas atitudes são previsíveis. Buscando um comportamento diferente, eles engrossam o caldo e caem na mesma ciclicidade que milhares de pessoas passam no mundo, agindo de maneira enfadonhamente igual a uma grande parcela da população. Ou talvez não percebam que o bonito do mundo não são coisas grandiosas, mas sim coisas simples e pequenas, como o desabrochar de uma flor, o nascer do sol, uma conversa até tarde com um amigo ou uma música no momento certo. Mas claro, é mais fácil praguejar e reclamar, ficando de braços cruzados, do que quebrar a cabeça e dedicar-se a mudar alguma coisa.

Se existem pessoas com poderes de mudar o mundo, são as pessoas inteligentes. O mundo é governado pela inteligência, e a inteligência, sendo a primazia da raça humana, o nosso legado, é o que faz o mundo ser como ele é. A inteligência é que traz o poder da análise, e a proposta de mudança. E se há uma coisa que eu considero frustrante, é ver pessoas com poderes para impedir o mal cruzarem os braços. Daí o exemplo da polícia. Esses inteligentes agem assim, da mesma forma que a polícia, desperdiçando sua capacidade de mudança e ajudando o mundo a ficar nessa bagunça e inércia. Digo mais, se deixar de fazer o bem é ajudar o mal, então são estas pessoas as responsáveis por todo o mal que tanto acusam o mundo de ter.

Diferente sim é lutar.Se queremos romper essa batalha sísifica, esse eterno cíclo que enxeu nossa história de vergonhas, trapaças e sangue, então devemos começar parando com escapismos e derrotismos fúteis. Devemos sim, erguer nossas cabeças e nos mostrar dispostos a batalhar cada dia, cada minuto e cada segundo contra o que há de errado nesse mundo, devemos nos mostrar dispostos a contrariar todos aqueles que insistem em permanecer em seu imobilismo e sua inércia. Devemos ter em mente que o importante não é vencer, mas sim lutar. O importante não é vencer, e sim mostrar de que lado você está, e se mostrar disposto a morrer ao invés de curvar-se a absurdos como os que vemos hoje. Só assim poderemos mostrar como o mundo deveria ser.

Gandhi, quando foi de sua visão o conhecimento, batalhou e mudou a Índia inteira. O que aconteceria se todos tivessem essa determinação? Será que é realmente impossível mudar alguma coisa? Ou será que é mais cômodo acreditar nisso e viver nossas vidas reclamando?

"Não sabemos se seremos vitoriosos, entretanto, o desejo que nos move é lutar contra o imobilismo, ao invés de assistir passivamente o dramático curso da história"
Michèle Sato

"Grandes poderes trazem grandes responsabilidades."Tio Ben (Homem Aranha)

Espero assim, que esse texto possa ajudar a essa minoria que batalha desesperadamente cada dia, a encontrar os companheiros que deveria ter, mas que estão nesse momento torcendo o nariz, sentados e reclamando.

sábado, 27 de junho de 2009

Teorema - Todos os números inteiros são interessantes.

Teorema -
Todo número inteiro é interessante.
Prova -
Suponhas que existe um conjunto I de números inteiros não interessantes.
Agora, enumere estes números.
Pegue o menor deles. Mas por ser o menor número inteiro não interessante, ele é justamente interessante!
Portanto, retire esse número da lista.
Repita este processo por indução.
Portanto, todo número inteiro é interessante, como queríamos demonstrar.
QED.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

A Fábula do Noel

Um menino, na celebração de Natal, enviou ao velho Noel uma carta angustiada:
-Querido Papai Noel, fui um bom menino esse ano, cumpri com todos os meus deveres, não desonrei minha família, tratei meus amigos como uma outra família. Não menosprezei os idosos e sempre atentei ao bem. Queria então, que atendesse ao meu pedido, esse que tanto machuca meu coração:
Queria ter poder para mudar o mundo. Queria poder abrir mares, voar pelos céus como um super-homem, assim como sua poderosa visão de calor e sopro gelado. Queria poder parar o tempo, segundo por segundo, minuto por minuto, e queria que cada segundo parado para mim fosse um sonho realizado. Não um sonho meu, mas um sonho de outrém. Quero que cada minuto parado seja uma vida que se salva, uma mãe que sorri, um roubo que se evita, um povo que brinda. Queria que todos entedessem o quão terrível tem sido nossa história. Quanto trapaça, inveja, mentira, morte e sangue sepultam e pavimentam a nossa jornada por este belo planeta Terra. E o quão desrespeitada foi nossa mãe Gaia, que tão gentilmente nos acolheu e nos deu filhos para sonhar, céus para admirar, flores para suspirar e amores para se levar. Mas acima de tudo: queria que essas pessoas entendessem que o passado não pode ser mudado, mas o futuro depende de nossos atos. Queria que elas entendessem que o mundo não é mal por natureza, mas sim nós é que nos conformamos com a nossa própria maldade, e assim entramos numa dança infinita de morte e matança, roubo e vingança. Pai Noel, faça os perceber que podem salvar o mundo apenas com uma atitude, que podemos sim construir uma história digna de uma lágrima, não de tristeza, mas sim de alegria e de admiração. Que nossos sucessores se emocionem com seus livros de história, pelo valor, pela audácia e pela coragem de nossa gente, que teve coragem de mudar um pensamento até então incontestável: que o ser humano é egoísta por natureza.
Pai Noel, meu desejo parece longo e complicado, e também o senhor deve estar cansado de tanto sofrimento na raça humana, de tanto chorar pelas crianças abandonadas e odiadas. Mas não desisto de meu sonho, pois se sou idiota e ingênuo por nele acreditar, então o senhor não poderia me dar melhor presente do que me fazer ingênuo pelo resto da vida.

E se o senhor não puder atender ao meu pedido, então tenho apenas mais um a lhe fazer: que o senhor não desista jamais de seus sonhos.
Feliz Natal!

A resposta do velho Noel foi apenas um único bilhete:
Este poder que me pede você já o tem: é o poder de devolver o sonho a quem o perdeu.
Feliz Natal, e nunca desista do seu sonho.