domingo, 15 de maio de 2011

Max Planck e a Concepção da Matéria

Poucos foram os séculos da história humana que presenciaram tantas mudanças quanto o século XX. Para melhor ou para pior, por atrocidades ou benevolências, o século XX, século de Elvis Presley, Adolf Hitler, Albert Einstein, Gandhi, foi um século pelo qual nossas concepções mais firmes e profundas da realidade foram alteradas: nem mesmo o espaço e o tempo, conceitos antes tratados, talvez exceto pelo mais contestador dos filósofos, como absolutos e imutáveis foram poupados de uma total reformulação.

Foi nesse contexto, pouco depois que Maxwell unificou a eletricidade, o magnetismo e a óptica e Boltzmann formular a mecânica estatística (calma, já falo mais sobre esses dois), que um físico chamado Max Planck apresentou um modesto trabalho no final de uma primavera de 1900, que viria também a mudar totalmente a nossa concepção sobre a matéria.

Para entender o quão magnífico foram os trabalhos de Planck, não tem jeito, é só estudando muita física :). Mas como eu sei que isso não é possível para muita gente, vou tentar passar da maneira mais agradável possível a beleza do seu trabalho e o que ele significou para a humanidade. Para isso, precisamos voltar muitos anos antes de Cristo, na gloriosa época dos gregos. A questão do que é feita a matéria começou a surgir ainda nessa época, possuindo várias hipóteses e vertentes diferentes. Muitos autores e estudiosos afirmam que as primeiras concepções da matéria são marcos da filosofia ocidental, mas há de se deixar claro que não há uma demarcação nítida entre o pensamento mítico, pré-racional e o pensamento racional associado com a visão científica do mundo. De fato, naquela época, a coexistência das duas cosmovisões era bem comum.

Mas a própria pergunta do que é feita a matéria já ilustra muito bem uma tendência que se reflete até hoje na ciência moderna. Quando nos perguntamos do que é feita a matéria, estamos naturalmente supondo que TODO e QUALQUER tipo de matéria é composto de alguma coisa mais simples, ou pelo menos, de um conjunto de coisa mais simples. A essa tendência de simplificação, costumamos chamar de reducionismo. A vertente contrária, que acredita que nem tudo pode ser reduzido a soma de suas partes, é o holísmo, "O todo é mais que a soma das partes", como já diria Aristóteles (o que não deixa de ser irônico, já que Aristóteles era um filósofo reducionista).

Uma das primeiras suposições feitas sobre a concepção da matéria se deve á Thales de Mileto, da Escola Jônica, que acreditava que toda e qualquer matéria era primordialmente água. Anaxímenes, outro filósofo de Mileto, acreditava que na verdade, tudo era primordialmente ar, enquanto que Heráclito acreditava que tudo era fogo. Xenófanes de Cólofon por sua vez acreditava que tudo era formado por terra, e finalmente, Aristóteles acreditava que todas as coisas eram concebidas dos quatro elementos, água, terra, fogo e ar. Embora essas concepções possam soar reducionistas demais, vale lembrar que para os gregos, água era qualquer tipo de líquido, terra qualquer tipo de sólido, fogo qualquer tipo de energia e ar qualquer tipo de gás (eles não estão errados no fim das contas). Em meio a esses filósofos, existiam também vertentes mais materialistas, como por exemplo, Demócrito, que acreditava que a matéria era formada por partículas indivisíveis e indestrutíveis (átomos!).

O problema natural dessas hipóteses é que elas não podiam ser testadas. Todos esses filósofos tem argumentos belíssimos a respeito de seus pontos de vista, mas nenhum deles falseável. Ao leitor interessado, sugiro o excelente livro Física Moderna de Francisco Caruso para conhecer mais.

O tempo passou e veio o declínio da Grécia, e a constituição da matéria continuou sendo um mistério, sendo até mesmo esquecido durantes os mais negros anos da Idade Média.

O advento da física, como a conhecemos hoje, começou com o método científico sugerido por Galileu, e pegou no tranco quando o grande físico Isaac Newton formulou suas três leis da mecânica, que até hoje são estudadas e fazem estudantes sofrerem no colegial ou na universidade. Por recapitulação apenas, lembro a vocês que a Primeira Lei, ou lei da Inércia, diz que um corpo em movimento retilínio uniforme ou em repouso assim permanecerá a menos que atue sobre ele uma força. A segunda lei, por sua vez, conhecida como Princípio Fundamental da Dinâmica, nos conta de que maneira uma força altera o movimento de um corpo, ao postular que F=ma, i.e, força igual a massa vezes aceleração, e a terceira lei diz que para cada ação existe uma reação de igual intensidade e sentido contrário. Sobre as leis de Newton, existem dois pontos principais a se considerar para fins dessa discussão:

  • As leis de Newton são reducionistas, no sentido explicado mais acima. Newton resumiu TODO e QUALQUER movimento em uma simples lei de força. Note que quando escrevemos F=ma, não importa se o objeto no qual a força atua é um ser vivo ou morto, se é uma pedra ou uma banana, se é uma pessoa ou um cometa, toda a força aplicada vai alterar movimentos da forma descrita pela lei;
  • Por motivos explicados no item anterior, para as leis de Newton, não importa do que é feita a matéria. Se a matéria for feita de átomos, continuaria valendo F=ma, assim como se não forem átomos, e sim pequenas bolinhas de queijo, ou duendes, ou qualquer coisa que você possa imaginar. Em outras palavras: as leis da mecânica são indiferentes a composição da matéria.

Foi também o próprio Newton quem formulou sua Lei da Gravitação Universal, que postulava a existência de uma força entre dois objetos, que só dependia da distância entre eles (mais especificamente, do inverso do quadrado da distância), da massa de cada um deles e de uma constante universal. Novamente, nessa lei não existe nenhuma consideração a ser feito a respeito da natureza da matéria: toda matéria possuí massa, portanto, exerce uma força gravitacional, sendo a constituição dessa matéria macacos microscópicos ou átomos, é indiferente para lei da Gravitação. De fato, a lei é tão indiferente a natureza da matéria que chega a ser herética: note que normalmente o símbolo associado à gravitação é uma maçã (que vem da história, possivelmente falsa, do insight de Newton sentado embaixo de uma macieira). A maçã é também o símbolo do pecado, motivo da expulsão de Adão e Eva do paraíso. E o que justamente afirma a lei da Gravitação?? A gravitação afirma que as leis do Céu são iguais as da Terra! A força gravitacional depende apenas de massa, e não se o objeto em questão é celeste ou terreno. Isso significa que as leis que governam o movimento dos astros celestiais são as mesmas leis que governam o movimento do andar de uma carruagem. E isso em si, é uma idéia reducionista bem forte!

Apesar do imenso sucesso das leis de Newton, principalmente após a descoberta do planeta Urano (descoberto por conta de uma detecção no desvio da órbita de Saturno, que pelas leis de Newton, só seria possível se houvesse um planeta como Urano orbitando próximo), elas falhavam em explicar alguns pontos fundamentais da natureza: por que alguns processos podem ocorrer em apenas um sentido? Por exemplo, considere a imagem abaixo:

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/16/Melting_icecubes.gif

Por quê o gelo no copo (tenham paciência quem já ouviu falar em entropia, por favor) pode derreter e virar água, mas um copo de água líquido, em temperaturas normais, não pode virar gelo? Se gelo pode derreter, porque água não pode congelar? Aí você responde: ela pode, mas você precisa colocá-la em um local frio. Mas por quê? Por quê existe uma direção para onde fluí o calor? Isso não está previsto nas leis da mecânica, sendo a única previsão nesse sentido é que a energia de um corpo deve se conservar. Foi por conta desse mistério que Kelvin, Carnot, Clausius e outros formularam as Leis da Termodinâmica, uma nova área da física, a saber:

  1. (Lei Zero): "Se um corpo A está em equilíbrio térmico com um corpo B, e este em equilíbrio com C, então C está em equilíbrio com A;
  2. (Primeira Lei): "A energia de um sistema isolado se conserva";
  3. (Segunda Lei): "A entropia de qualquer processo espontâneo, i.e, que ocorre naturalmente, sem precisarmos gastar energia, sempre aumenta";
  4. (Terceira Lei): "É impossível atingir por meio de processos finitos, por mais idealizados que possam ser, o zero absoluto de temperatura".

Falando de forma simples, a Lei Zero nos permite definir temperatura e usar um termômetro (quando usamos um termômetro, estamos tacitamente admitindo a validade da Lei Zero), a primeira lei nos diz que não podemos criar energia de lugar algum e não podemos destruir energia; a segunda lei diz que existe uma quantidade chamada entropia, que mais tarde, na época de Boltzmann, é interpretada como a desordem de um sistema, que sempre aumenta se o sistema for isolado e o processo espontâneo. É importante lembrar dessas suposições. A terceira lei nos conta simplesmente que não podemos atingir o zero de temperatura (e isso tem conseqüências bastante profundas).

A termodinâmica, assim como a mecânica de newtoniana, é completamente indiferente a natureza da matéria, ou do sistema onde ela é invocada. Note que em nenhuma das quatro leis apresentadas existe qualquer necessidade de se conhecer a natureza interna de um sistema. O sistema pode ser um gás, um fio sob tensão, um sal paramagnético, macacos atrozes, hienas saltitantes ou qualquer coisa que você queira imaginar. Todo e qualquer processo que possa ocorrer com esse corpo de natureza misteriosa obedece as leis da termodinâmica.

Entretanto, por motivos que não são fáceis de se explicar, a Termodinâmica não é uma teoria reducionista, assim como é a mecânica. Posso tentar explicar isso grosseiramente dizendo que a termodinâmica não reduz o sistema a primeiros princípios (por exemplo, as quatro leis enunciadas da Termodinâmica podem ser reduzidas apenas a duas, a Primeira e a Segunda Lei. A Lei Zero e a Terceira Lei são conseqüências da Segunda Lei). Outro motivo pode ser enxergado da seguinte maneira: para a teoria de Newton, as coisas são partículas, que são objetos idealizados, infinitamente pequenos e sem dimensão. As partículas para a mecânica eram um conceito artificial, criado apenas para simplificação e que depois de feita as contas, por uma operação matemática chamada integração, eram removidas e tornavam-se corpos extensos, de tamanho e dimensão finitos. Agora, do que eram feitos estes corpos em essencia não importava! A partícula é meramente na época um artifício matemático. Para a termodinâmica, não faz a menor diferença se são ou não partículas! Através de argumentos termodinâmicos, podemos conhecer propriedades interessantes de um sistema, mas ela é incapaz de reduzir a descrição de qualquer sistema que seja a primeiros princípios. Tanto é que na época em que foi formulada, uma boa parte das equações da termodinâmica eram empíricas.

Por fim, para terminar essa sucinta (acredite, não estou sendo irônico quando digo sucinto. Existem livros inteiros para descrever cada uma das minúcias que passei batido nessa história) discussão, começaram a surgir no século XIX as leis da eletricidade e do magnetismo, sendo elas depois finalmente unificadas por Maxwell como uma teoria de campos. Já para o eletromagnetismo, a coisa começa a mudar de figura em relação a natureza da matéria. A força elétrica, por exemplo, provocada pela presença de duas cargas, depende do produto da carga elétrica das duas, o inverso do quadrado da distância e uma constante que depende do material onde as cargas estão inseridas. Oras, ao contrário da gravitação, existia algo estranho no eletromagnetismo: é natural pensar que todos os corpos tem massa, mas porque alguns corpos tem carga elétrica e outros não? Essas são questões que poderiam e começariam a apontar para o estudo da estrutura da matéria, coisa que era completamente supérflua até então (para a física, ao menos). Essa discussão tornou-se ainda mais profunda quando Boltzmann formulou a mecânica estatística. Boltzmann imaginou que, ao contrário da concepção da mecânica newtoniana até o momento, todas as coisas eram formadas por pequenas partículas chamadas átomos, e que as propriedades macroscópicas, como temperatura, pressão, e volume de um sistema poderiam ser derivadas e obtidas por considerações estatísticas das leis de Newton. Assim, poderíamos calcular a pressão de um gás imaginando que ele era formado por átomos e estudando a média dos movimentos desses átomos. A temperatura seria então uma medida da energia cinética das partículas. Vale notar que conceitos como temperatura, pressão e volume eram até então variáveis que só tinham sentido para a termodinâmica! A proposta de unificar esses conceitos macroscópicos termodinâmicos com as leis fundamentais de Newton era ousada. Havia, naturalmente, o problema da entropia: as leis de Newton não levavam em conta a direção de processos espontâneos tal qual requeriam as leis termodinâmicas. Boltzmann, entretanto, interpretou a entropia da termodinâmica como representando um grau de desordem do sistema, e postulando que essa desordem tendia sempre a aumentar (por uma questão de probabilidade). Apesar da enorme beleza da idéia, a maioria dos físicos da época, como por exemplo Planck, eram extremamentes resistentes a idéia de que a Termodinâmica poderia ser derivada de leis físicas mais fundamentais, como eram as da mecânica estatística.

E esse era o contexto da física no último ano do século XIX (no qual Planck apresentou seu trabalho). Como espero ter deixado claro, se você perguntasse a um físico do século XIX e início do século XX do que era feita a matéria, ele provavelmente diria "tanto faz" ou ainda "essa questão não concerne a minha área de estudos", embora alguns deles começassem a se incomodar com o eletromagnetismo e a teoria de Boltzmann. A constituição da matéria no momento era portanto, supérflua, sendo necessária apenas uma explicação do porque alguns corpos tem cargas e outros não (e isso foi imaginado de diversas maneiras diferentes, nem todas elas relacionadas com a estrutura de um material).

A grande avalanche ocorreu quando Planck tentou explicar o comportamento de um objeto chamado de corpo negro. Corpo negro em física é qualquer corpo que absorve toda radiação que nele incide, não refletindo ou deixando atravessar nenhum tipo de radiação. Na época existia uma imensa dificuldade na descrição do corpo negro, isso pois todo e qualquer modelo que tentavamos a ele aplicar na época falhava em prever o comportamento do corpo para comprimentos de onda pequenos. Frustrados, diversos físicos propuseram formuladas empíricas que descreviam satisfatoriamente o corpo negro, mas nenhuma dessas fórmulas eram baseadas em teorias físicas existentes na época, como o eletromagnetismo, a mecânica ou a termodinâmica (embora esta última tenha sido muito usada na reeinterpretação de algumas dessas equações). O problema que Planck enfrentava pode ser visualizado na figura abaixo:

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/19/Black_body.svg

A curva em preto é a previsão da teoria clássica (que cresce indefinidamente a medida que nos aproximamos de pequenos comprimentos de onda, no eixo x), e as curvas coloridas são curvas feitas experimentalmente. Nas curvas experimentais podemos ver que as curvas não crescem indefinidamente, mas tem um pico e depois voltam a cair.

Planck era um físico extremamente conservador, que detestava, por exemplo, a teoria de Boltzmann, achando que a mecânica e a termodinâmica eram completamente incompatíveis. Entretanto, quanto mais ele se aprofundava no estudo do corpo negro, mais ele sentia necessidade de um modelo físico mais profundo, que levasse em conta a composição da matéria. Foi a partir daí que Planck teve que, pela primeira vez na história da física, tentar vislumbrar como era a estrutura da matéria, para assim poder explicar porque o corpo negro tinha comportamento diferente do previsto pela teoria eletromagnética. Ao fazer isso, ele imaginou que um corpo negro era formado por pequenas molas, que ao receber radiação, oscilavam com a mesma freqüência da radiação e depois emitiam essa radiação de volta. Isso por si só já é uma idéia absolutamente revolucionária! Foi o primeiro modelo e a primeira tentativa de tentar descrever a estrutura da matéria, de tentar através de leis da mecânica compreender propriedades físicas de um corpo! Mas ao fazer isso, ele se deparou com uma dificuldade fundamental: as "molas" que ele imaginou refletiriam parte da radiação recebida, de modos harmônicos, como se fossem notas musicais, chamados em física de modos normais de vibração. Por argumentos de conservação de energia e momento, e por outros argumentos bem complicados que não me convém fazer análise, num ato de desespero final, Planck postulou que a energia da radiação emitida por um corpo negro era um múltiplo de sua freqüência, levando a famosa equação que aprendemos no colégio E=h.f (onde h é uma constante e f é a frequência).

Se Planck tivesse alguma idéia do que sua descoberta causaria, talvez ele não a tivesse publicado achando as conseqüências absurdas. Na época em que escreveu que E=hf, Planck não acreditava que essa equação tivesse realidade física, sendo apenas um artifício matemático. Mas eis que no milagroso ano de 1905, Albert Einstein publicado um artigo afirmando que a energia de qualquer radiação é E=hf, e dessa vez, sem dizer que aquilo não tinha realidade física! Para explicar isso, Einstein dizia que a radiação eletromagnética na verdade não era uma onda, como acreditavam os físicos na época, mas sim ora partícula, ora onda! Tal suposição levou os físicos a loucura, e suposições ainda mais malucas foram feitas, considerando agora por exemplo que também matéria não apenas matéria, mas matéria-onda! Isso provocou o nascimento da hoje famosa Mecânica Quântica, que é como hoje enxergamos a estrutura da matéria, e esse é um assunto que deixarei para outra hora.

A beleza do trabalho de Planck foi mais do que quantizar quantidades físicas, foi ser o primeiro a desbravar e tentar modelar a própria estrutura da matéria, tópico que hoje é profissão da maioria dos físicos brasileiros (i.e, a física da matéria) e que hoje tem nos trazido tantos benefícios tecnológicos como entendido dos pílares e forças fundamentais da natureza.

Espero ter conseguido deixar o texto bem claro, e qualquer pergunta, crítica ou sugestão, favor comentar que respondo prontamente =)

Um comentário:

Balhau disse...

Está uma abordagem muito clara, simples e interessante. Parabéns.