domingo, 30 de maio de 2010

Prelúdio: Despertar

Conforme seu Porche corria pelas ruas da cidade, seus olhos se prenderam subitamente a um velho letreiro mal iluminado, naquela esquina mal frequentada. Os letreiro dizia em letras quase ilegíveis, quase como se fosse mais um tênue farol para um barco perdido do que um aviso comercial para um transeunte: "Cartomancia e Advinhações".
Besteira. Ele pensou. Somente a gentalha que frequentava uma região como aquela podia se quer dar-se ao luxo de considerar tamanha tolice. É por isso que aquela região era tão pobre. Se ao menos as pessoas soubessem em que empregar seu dinheiro, ao invés de cartas e adivinhações baratas, ganhariam mais dinheiro e fariam mais sucesso na vida. Os transeuntes quase conseguiam ler seu transtorno, conforme a sua raiva transmitia-se, por alguma lei física ainda desconhecida ao pedal do carro. E então, aquele carro movido por uma força ainda não descrita pelo homem, o ódio, disparou pela cidade.
Por quê aquilo lhe irritava tanto? O que tinha ele haver com o problema dos outros? O dinheiro e a tolice eram deles, eles que ficassem pobres e passem fome. Isso em nada mudaria a sua maneira de pensar. Apenas se a educa...seu devaneio foi interrompido por uma série de eventos demasiados confusos para sua cabeça entender a tempo antes de cair na inconsciência. O que ele pode perceber foi um barulho estrondoso ao seu lado, e um empurrão magnífico vindo na outra direção. E então, silêncio.

"Pode me ouvir filho?" Uma voz vindo de algum lugar da escuridão chamou sua atenção.
"Oi?"Perguntou de volta.
"Você sofreu um grave acidente senhor...Dionísio. No momento o senhor se encontra em repouso no hospital. Consegue me entender?"
E de repente, a luz voltou aos seus olhos. Os raios de luz não pareciam estar com saudades, tendo em vista que carregavam péssimas notícias: conforme sua visão voltava ao foco, Dionísio se viu deitado em uma cama de hospital, com tantas ataturadas que poderia facilmente se passar por uma múmia em alguma festa de Halloween. Um médico olhava preocupado em sua direção.

"Você ficará bem, filho. Com algum repouso logo estará pronto para partir. Infelizmente, o mesmo não pode ser dito em relação ao seu carro."
"Obrigado doutor...?"
Mas se o doutor respondeu o nome, Dionísio nunca soube, pois no momento seguinte os raios de luz se cansaram da breve visita e se esvariam, levando Dionísio novamente à escuridão.

Enquanto estava na escuridão, Dionísio se viu em uma sala repleta de espelhos. Ou deveriam ser espelhos, caso cada um deles não lhe mostrasse um reflexo diferente. Um destes espelhos mostrava um homem de terno. Elegante, sorrindo, do tipo ideal para se fazer negócios. O outro espelho mostrava um homem mais velho, de cabelos e barbas mal cuidados, sua face transbordando decepção e tristeza. De certa maneira, este espelho lhe lembrava seu pai. O terceiro espelho lhe mostrava uma criança, alegre, a pular e festejar pelos cantos da sala, fazendo de cada quina e cada canto um universo diferente e empolgante. Outro espelho, mostrava-se vazio. Outro ainda, lhe mostrava uma mulher.

Confuso, Dionísio sentia um desejo grande de se enxergar nos espelhos. Como era sua própria imagem? Quem destes ele era? Não lhe vinha a memória sua imagem, e tal fato começou a lhe desesperar. Como saber qual dos reflexos? Como saber seu sexo? Como saber sua idade? Tentou se lembrar do espelho do seu banheiro, o qual todo dia, ao acordar, escovava seus dentes e fazias suas necessidades higiênicas. Com decepção, percebeu que não se lembrava de sua imagem. Ainda que todo dia fizesse esse mesmo processo.

A escuridão novamente se desvaneceu, mas dessa vez, a luz lhe foi receptiva: a imagem que se formou em sua retina foi a de um médico sorrindo e lhe pedindo uma assinatura de alta do hospital.

Ao chegar em sua casa, Dionísio sentou-se na poltrona da sala. Ainda não se sentia preparado para entrar dentro de sua casa. A sua sala, conforme pensava, era o lugar onde era permitido ao mundo trazer seus males. Depois do suave portal, enfeitado por uma porta simples de madeira e uma vidraça colorida, não era permitido ao mundo adentrar com seus sapatos sujos e maculados. Pelo menos, era isso que ele gostaria de acreditar. Toda discussão ou briga deveria ser feita nesta sala, assim como qualquer tratamento de negócios. Passada esta sala, o mundo não deveria acompanhá-lo.

A sala era aconchegante. Embora não fosse perceptível para Dionísio, morador do local, um doce cheiro de biscotios sendo assados constantemente enxia o lugar, dado as atividades de sua mãe, moradora da casa, que era uma cozinheira compulsiva (e também compulsiva comedora de biscoitos). Os sofás sempre em cores vivídas e quentes, e pendurado nas paredes, quadros surealistas diversos, a maioria com o retrato do Tempo. Um relógio de pêndulo também era pendurado sobre uma das paredes, e seu badalar era doce. Não como um badalar de relógio para um condenado que espera a hora de sua sentença, ou que espera a hora de sair para o trabalho, mas o badalar de um relógio de quando estamos na casa de nossos avós, ainda crianças, descompromissado, ritmado, e constante. Tranquilizador.

A imagem do sonho não conseguia deixar Dionísio. Quem ele era? Seria ele o fino homem de negócios, destinado a uma carreira de sucesso? Seria ele o velho, amargurado e decepcionado com o mundo? Seria então, a criança feliz que fazia de tudo um universo? Ou seria aquela mulher elegante? Seria ele, na verdade, tudo aquilo? Pensou em olhar um espelho. Mas isso não faria a menor diferença. Em todos os dias de sua vida, ele olhará um espelho, mas nunca se aperceberá de quem era. Qual seria o sentido de fazer isso agora? A sua necessidade não era física.

Foi então que percebeu. Escreveu um curto bilhete para sua mãe, dizendo que não sabia onde ia, nem se voltava. Mas que precisava sair.

Pegou seu sobretudo vermelho, vestiu seu chapéu e saiu. Lá fora, o céu era ilegível e cinzento. Chovia uma leve garoa.

Era hora de prestar uma visita à cartomante.

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