sábado, 8 de dezembro de 2007

A Súplica

De repente parou.


Parou e viu que não via. Percebeu que na verdade nada percebia. Fernanda olhou a sua volta e pela primeira vez na vida notou: sou um ser vivo, estou viva, eu existo. O mundo se abriu como um estranho leque a sua volta, como se cada pequeno canto da realidade aparecesse e lhe tirasse o chapéu fazendo uma reverência. E as cores vibravam como dançarinas em um alegre ballèt, cada fóton de luz era como uma verdadeira obra de arte sul-realista. Respirou o ar que jamais percebeu respirar: pela primeira vez percebeu o movimento de seus pulmões.


Caminhou, sabendo pela primeira vez que caminhava, que colocava um pé após o outro e se deslocava. Cada árvore da floresta noturna parecia mais magnífica que toda torre de marfim idealizada pelo mais nobre poeta. Cada ser que no chão rastejava era parte dela, era para ela um grande Amor.


Ela percebeu um pássaro que voava. Mas ela não apenas percebeu o pássaro. Ela era o próprio pássaro que voava. Ela era a gota de água que cai no oceano, se tornando o próprio oceano.


Então olhou as estrelas...e chorou. Chorou não de tristeza por não poder voar as estrelas. Não chorou por não ser magnífica, ou não ter os olhos brilhantes como elas. Ou ainda invejando a divindade delas. Chorou porque sabia que não as via. Chorou porque sabia que nunca em sua vida verdadeiramente viu uma estrela. Isso não porque as estrelas encontram-se a anos-luz da Terra. Mas sim porque dormiu por toda a sua vida. Todos os dias de sua vida saiu de sua casa e olhou o céu...mas não como um ser humano, como um rôbo que é programado para sair exatamente às 20:00 e olhar o céu. Depois é programado para que diga: "que coisa linda.".


De fato, Fernanda percebeu que não sabia ver sem julgar. Tudo que avistava sua mente julgava. Seja com algum filosofia de algum filósofo que tinha lido, seja com algum poema de algum escritor, ou simplesmente com o julgamente típico: essa árvore é bonita, aquela árvore é feia. Mas ela nunca olhou para algo sem julgar. Olhar por olhar. Ouvir por ouvir. Sentir por sentir. Amar por amor.


Com tristeza notou que aquela terrivel névoa que cobriu seu olhar por todos os dias da sua vida; talvez em sua remota infância ela não existisse, estava voltando, nublando novamente a sua vista, impedindo-a de ver as coisas como são de fato. E com tristeza mirou-se em um lago.


A lua bela como o demônio, mas sem a sua malidicência.


Com espanto percebeu que mirava seu próprio reflexo. E viu um tigre, um macaco, um leão, um pássaro, uma águia. E viu uma espantosa massa negra que a tudo cegava, que a tudo escravizava e dominava.


Fernanda despiu-se, mas dessa vez percebendo que se despia. E banhou-se em água e luz. Banhou-se como quem lava a alma, como quem expressa a alma.


E saiu do lago conforme a realidade se curvava, abria os braços para recebê-la, e ela quase escutou sua voz que dizia: "minha filha".


E conforme mirava novamente a Lua, sabia que dessa vez olhava para Lua. Sabia que dessa vez olhava as estrelas. Sabia que dessa vez havia despertado a Serpente.


Sabia que "Sou a chama que arde em cada grão de areia, assim como queima no coração de cada estrela".


E assim foi finalmente feliz. Assim foi verdadeiramente livre. Assim foi verdadeiramente uma Mestra.


Paz Inverencial.




2 comentários:

Anônimo disse...

Esse momento de verdade chega para todos. Chega um momento para todos nós que nos tocamos que estamos vivendo apenas viver, programados para continuar acordando e continuar seguindo as regras e caminhos. Esse momento pode ser amanhã ou apenas nos últimos minutos de vida, quando nos lamentamos fortemente de todas as coisas que não fizemos, de todas as árvores que não admiramos apenas por admirar e morremos infelizes afinal. Algumas pessoas de desvirtuam e acabam fazendo tudo fora dos eixos, apenas para não viver programado, outras procuram evoluir, procuram enriquecer a alma e se tornar alguem, verdadeiramente feliz.

a única certeza, é de que esse momento chega a todos.


muito bem escrito
abraços
:*

Unknown disse...

"Chegou um momento em que não adianta mais viver. Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem limitações."

Carlos Drummond de Andrade

Pra mim sintetiza a idéia que eu quis passar no conto.

Obrigado pelo elogio.